tirada #36

há uns dias demos boleia a um amigo e na rádio passava uma música que falava de bússolas. o rapaz perguntou o que era uma e eu pedi ao francisco para lhe explicar.

– olha, ‘amagina’… isto é uma floresta. (e abre o apoio entre os bancos). ‘amagina’, tu estás aqui. (e aponta para um sítio desse apoio) estás a ver? tu estás aqui… e os teus pais estão aqui, escondidos num buraco. (e aponta para outro sítio do apoio). tu estás perdido e a bússola ajuda-te a encontrar os teus pais na floresta. ajuda-te a encontrar o caminho.

[adoro a imaginação destes dois miúdos – há dois dias não eram amigos e ontem um era um porco e o outro era o dono – ah ah]

 

madalena

já passaram 100 dias desde que a madalena nasceu.

e todos estes dias tenho pensado e idealizado o que tenho que escrever e pôr no papel para nunca me esquecer de todos os pormenores do que aconteceu desde esse dia. aconteceu tanta coisa e ao mesmo tempo parece que não aconteceu nada. parece que já está tudo encaixado e que ela já cá está há uma vida inteira.

veio de repente, muito apressada, vários dias antes do previsto. mas, tal como o irmão mais novo, cumpriu as minhas ordens (desejos) desde a primeira hora e nasceu no mês que lhe competia. aguentou mais um dia que o francisco, em vez de dia um, nasceu dia dois. mais uma vez de madrugada, numa terça-feira. toda a sua vinda foi uma peripécia, agora engraçada, na altura um pouco louca e descontrolada. mas isso já lá vai e fica para contar mais tarde.

por agora, meu amor mais pequenino, meu amor dos 100 dias, ainda bem que vieste.

“era eu um passarinho, caído do ninho, / à espera do fim, / e eras tu, até qu’enfim/ a voltar p’ra mim” – miguel araújo – recantiga

tirada #35

ontem, depois de 20 minutos na cama, aparece na sala e diz:

– mãe, só quero fazer uma pergunta.

– diz lá…

– o que é que os porcos comem?

hoje, depois de 20 minutos na cama, aparece na sala e diz:

– mãe, só quero fazer duas perguntas.

– diz lá…

– porque é que os porcos comem tudo?… e posso dormir na tua cama?

a morte é um dia que vale a pena viver

para reflectir.

o diogo fica sempre muito espantado quando falo da morte com naturalidade, muitas vezes rematando as conversas com um ‘vamos todos morrer.’ ou ‘estamos todos’ depois de alguém dizer ‘estou a morrer!’, queixando-se de um esforço físico grande ou de uma constipação mais chata.

mas é mesmo isso que eu sinto, a morte é uma coisa natural, inevitável ninguém tem dúvidas, mas aceitar que vai acontecer, A TODOS, é uma parte do caminho que fica feita e facilita a vida do dia-a-dia.

como diz a doutora na palestra, ninguém está preparado para morrer, ou ninguém quer morrer, óbvio, muito menos hoje, que ainda tenho tanto para fazer e não dá jeito que tenho que fazer sopa. mas ter esta aceitação interior, esta paz que me diz, vais morrer sim, a tua mãe vai morrer, os teus filhos vão morrer, suaviza toda a tristeza, toda a revolta até, que possa existir em torno deste assunto.

claro que toda esta construção e arrumação emocional vem do que aconteceu em maio de 2016. a morte violenta e inesperada do meu pai foi – e ainda é – a maior e mais dolorosa transformação da minha vida. o nascimento dos meus filhos também foi transformador, claro, mas não de uma forma dolorosa e triste, o nascimento dos meus filhos foi uma coisa boa, feliz e alegre, foi uma coisa de vida. não de morte. a morte pode, e no meu entender deve, ter esta capacidade de nos transformar em melhores pessoas, de nos dar a oportunidade de absorver e aceitar a validade e preciosidade que é a vida, de cumprirmos a vida, de vivermos, de estarmos, de sentirmos.

e quando os meus filhos perguntam ‘tu vais morrer?’ ou ‘eu vou morrer?’, eu tenho obrigação de dizer que sim, com calma e naturalidade, para não lhes transferir o medo que temos de morrer, para não os fazer sofrer por antecipação por uma coisa que NINGUÉM sabe quando acontece porque não há hora nem dia marcados no calendário do nosso telefone. vai acontecer, sim, meus queridos, vamos todos morrer mas até lá temos tanto para fazer.

 

tirada #34

francisco em casa da avó, atira uma prateleira de cd’s ao chão. a avó vai ter com ele e pergunta:

– francisco, quem é que fez isto?

– eu não fui.

– mas não está aqui mais ninguém. foste tu que atiraste isto ao chão.

– não fui eu, foi um fantasma.

– mas não está aqui nenhum fantasma.

– oh avó, tu sabes que os fantasmas atravessam paredes? ele já fugiu…

tarde de ronha no sofá

estávamos a ver desenhos animados em loop, na esperança que o tempo menos bom lhes desse sono e a mim sossego.

nada disso. não pararam de se mexer e de falar e mexer e falar. só a avó é que conseguiu dormitar no cadeirão mais afastado da televisão.

poucos depois disto, já que não havia sesta para ninguém, siga para casa fazer render a máquina de secar roupa.

consegues, sim

– mãe, podes ajudar-me? não consigo fazer isto.

– consegues, sim. segues os números e fazes um de cada vez.

e assim, depois de se concentrar, fez a sua primeira cidade.

este livro é incrível, comprei-o há mais de quatro anos, sabendo que ia ser uma ferramenta para contar histórias e partilhar brincadeiras.

até agora tinha servido para eu ou o pai fazermos desenhos. eles escolhiam os bonecos e nós íamos fazendo. também serviu para o pai ficar contente e desenhar em condições e para eu já saber fazer girafas, elefantes e afins de cor. mas nas últimas semanas começou a servir para o joão experimentar: já fez castelos e cavaleiros. gosta de os misturar com princesas e dragões, desenhados por mim.

agora acho que percebeu a dinâmica do livro e percebeu que é capaz de fazer qualquer um dos desenhos. desde o sapo mais simples à cidade de arranha-céus.

parece que todos estes anos a acumular folhas de rascunho vão servir para alguma coisa, venham daí os desenhos, as cidades e aldeias, os cavaleiros e elefantes. gastem-se lápis e canetas, que a imaginação agradece.